Os Camelos

Segundo Friedrich Nietzsche, a vida do ser humano pode ser dividida em três sucessivas metamorfoses (ou estados) do espírito: Camelo, Leão e Criança.
Todo o ser humano que queira evoluir, para o fazer, tem que assimilar o passado. Só assimilando o passado se conseguirá libertar do mesmo e evoluir. Contudo, não se confunda o “assimilar” com “memorizar” o passado. Memorizar é aquilo que os animais fazem e como todos sabemos, não evoluem – não andam verticalmente, não lhes crescem as mãos, não se desenvolvem psicologicamente... Ok, também conheço animais que são mais evoluídos do que certos seres humanos, mas isso fica para outra vez. A lição a reter aqui é que só o ser humano tem a capacidade de acumular e reter as aprendizagens do passado e, com esse conhecimento, evoluir. A isto dá-se o nome de assimilação.

O que o Camelo faz é memorizar, obedecer, dizer “sim”. O Camelo tem medo, vive muito do passado e encontra-se num estado de pré-ego. A obediência e as crenças são as características desse estado, de Camelo. Ou seja, a mente ainda está a crescer, mas encontra-se incompleta. O Camelo é dependente, inconsciente e incapaz de decidir. Claro que a dependência não é ser dependente dos pais, ou da mulher, ou do marido; é uma dependência psicológica, da sociedade, das suas regras e crenças, que lhe são enfiadas pela goela abaixo – e ele engole com especial prazer. Já a “incapacidade de decidir” facilmente se explica porque, se nada se questiona, se se diz “sim” a tudo, o que é que há para decidir?! Quando eu também digo “incapaz de decidir” quero dizer decidir em consciência. Se se é inconsciente como é que se poderá decidir em consciência? Espero que entendam isto.

O Camelo tem uma (inconsciente) baixa auto-estima, pois acha que todos são mais importantes do que ele, o outro é sempre mais importante: o professor é mais importante, o doutor é mais importante, o padre é mais importante, os pais são mais importantes, etc. Logo, o Camelo deixa sempre as decisões nas mãos dos outros, aqueles que são importantes. Dá-se, assim, uma total desresponsabilização por parte do indivíduo, e é por isso que nunca ouvimos um Camelo a responsabilizar-se por nada, atribuindo sempre a culpa de tudo a terceiros. Ou seja, todos os males que os afligem, ora são “culpa” do destino, ora de Deus, ora de qualquer outra pessoa que não eles. Isto é ser um autêntico Camelo inconsciente.

  
Estado de "Leão"
O estado de Leão é caracterizado pela revolta – contra o camelo e os seus medos -, desmistificando todas aquelas afirmações do “tu não podes” ou “tu não consegues”, afirmações essas que a sociedade nos ensinou a acreditar. Este estado é o oposto do de Camelo - aqui já existe o ego. O ego é colocado à frente de tudo. O Leão não tem medo, é reactivo, enfrenta tudo e todos e desafia a própria autoridade. Chega a não ter respeito por nada. Tudo isso, porque julga ter descoberto a sua luz interior e os valores que considera serem os autênticos. Os Camelos não gostam de estar na presença de Leões, têm medo. O desconhecido assusta qualquer Camelo. O Leão já assimilou parte do seu passado (não o assimilou totalmente porque ainda existem ressentimentos, mágoas e situações não resolvidas), sendo que vive centrado no futuro. Portanto, quando se é Leão, a sombra do Camelo ainda nos persegue (sendo esta limitação aquilo que nos impede de passar ao estado seguinte). Só se poderá considerar livre aquele que não depende ou está preso no passado.


Estado de “Criança”
A passagem de Camelo para Leão ocorre porque existiu uma evolução no próprio indivíduo – foi por vontade própria -, sem interferência da sociedade. A passagem de Leão para criança já necessita de algo mais drástico e ainda mais evoluído, necessita que se sofra uma revolução interna. O estado de criança é o pós-ego, é a sabedoria, é o viver no presente. Osho acredita que essa revolução interna só pode existir com a ajuda de um mestre, um Buda ou um Cristo, por exemplo. Osho questiona como é que uma tribo primitiva pode sonhar com um carro se nunca o viu? Segundo ele, ninguém pode sonhar com o que nunca viu, só quando já se viu alguma coisa, “um Cristo, um Buda ou Bodhidharma”. Diz Osho que “estas pessoas têm uma aparência exactamente igual à sua, no entanto, não são como você. Têm o mesmo corpo, a mesma estrutura e, no entanto, qualquer coisa do desconhecido penetrou o seu ser. O transcendente veio ter com eles, o transcendente é mesmo muito tangível. Se se aproximar deles com simpatia e afecto, será capaz de ter alguns vislumbres do seu céu interior. E uma vez que tenha visto esse seu interior, vai começar a sonhar com ele”. Surgirá um desejo vindo de dentro da pessoa em como é que se poderá tornar igual, como é que se poderá atingir essa evolução… É essa a “infecção” que passa do mestre para o discípulo, segundo Osho.

Osho explica de forma muito sucinta os 3 estados: O Camelo é teísta (acredita na existência de um Deus), o Leão é ateu e a Criança é religiosa. Não, ela não acredita na existência das religiões que se inventaram, a sua religião é a simplicidade, o amor e a inocência. “A Criança é simplesmente… inefável, indefinível, um mistério, uma maravilha. (…) Buda chama a isto Nirvana, Jesus chama-lhe Reino dos Céus. Você pode-lhe chamar o que quiser”.

 Onde me quero focar é mesmo nos camelos, desses percebo eu, até porque sou doutorado na “camelice”.

A sociedade é constituída na sua maioria por Camelos. O Camelo vive na ilusão do “acreditar”. É bom acreditar em algo, e a fé pode mover montanhas, mas não faz com que o indivíduo evolua. Portanto, não é por se ter fé que se deixa de ser Camelo. A sociedade afasta os Leões, essas pessoas incomodam, criam preocupações e tiram-lhes o sono. Os Camelos não gostam que se questione, não gostam da imaginação e da ousadia dos Leões, não gostam que se coloque em causa as suas crenças – mesmo que lhes seja provado que as mesmas estão erradas. Os Camelos são contra tudo o que é novo (eu conheço imensos Camelos). Todos começamos por ser Camelos (graças à sociedade), poucos evoluem para Leões (graças a si próprios) e muito poucos fazem a sua revolução interna e se tornam “crianças” novamente.


Haverá ainda alguma dúvida de quem são os Camelos? 

Se ainda não ficou bem claro quem são, eu dou alguns exemplos. Os Camelos são aqueles que seguem as modas só porque está na moda. São aqueles que vão rezar para as igrejas ou mesquitas, são aqueles que idolatram e perseguem os partidos políticos e os seus representantes, os actores/actrizes, os clubes de futebol e os seus jogadores, os cantores, etc. Camelos são aqueles que são nacionalistas, morrem por uma colectividade que nada representa, ou matam outras pessoas pela mesma razão. Camelos são aqueles que acreditam que ser inteligente é memorizar montes de matérias… E ainda lhes atribuem uma nota por terem memorizado bem (ou mal, consoante o caso). Camelos são aqueles que julgam ser superiores às outras pessoas só porque têm hotéis, empresas, casas, carros e dinheiro – camelos também são todos aqueles que acreditam nisso (isto é, aqueles que acreditam que essas pessoas são superiores). Camelos são aqueles que acreditam em tudo o que vêem ou ouvem na televisão. Camelos são aqueles que nos dizem que a felicidade está em ser-se doutor, engenheiro, ou em ter dinheiro - Camelos são também os que acreditam nisso. Enfim, no estado de Camelo, todos são papagaios. Não se questiona nada, apenas se repete, apenas se acredita. Se entrarmos, por exemplo, numa igreja, ou local semelhante, apenas encontraremos grandes reuniões de camelos; não se encontrará nenhum ser humano, no verdadeiro sentido do termo… Agora, chega. Já estou farto de camelos.


PS: Não quero ofender os verdadeiros e nobres animais.
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